terça-feira, 24 de novembro de 2009

sim, eu concordo com a Veja



Era o que me faltava. Digam o que quiserem da Revista Veja, mas a matéria de Marcelo Marthe desta semana está correta do começo ao fim. Na reportagem, ele fala sobre a nova polêmica de 'Viver a Vida': o tapa na cara de Helena (Taís Araujo) dado por Tereza (Lilia Cabral). E diz em sua linha fina: "A humilhação de Taís Araújo faz com que Viver a Vida finalmente dê o que falar. Já tem até militante do movimento negro dizendo besteira". Pode parecer reacionário. Não, não é. Segue a matéria abaixo, na íntegra.

Na última segunda-feira, a novela Viver a Vida exibiu o que não havia exibido até aqui: cenas que o público comentou e comentou de novo nos dias seguintes. Acossada em sua própria casa por Tereza (Lilia Cabral), a mocinha Helena (Taís Araújo) suportou calada a acusação de que seria culpada pelo acidente automobilístico que deixou a filha da megera, Luciana (Alinne Moraes), tetraplégica. Empapada em lágrimas (e, à falta de um lenço, limpando compulsivamente o nariz com as mãos), Helena então caiu de joelhos para suplicar perdão. Tereza não deixou barato. Aplicou-lhe uma sonora bofetada, mas sem perder a fleuma: enquanto batia com uma mão, mantinha a outra elegantemente enfiada no bolso do terninho.
No mesmo capítulo, Luciana sacudiu-se toda na cama do hospital ao ser informada pelos médicos de que estava incapacitada de se movimentar (quanto mais se sacudir) do pescoço para baixo. Para conjugar lágrimas com sangue, a cirurgia de reconstituição de sua coluna foi mostrada sem economia nos detalhes clínicos. Embora a audiência ainda esteja fraca, essas sequências "fortes" finalmente transformaram Viver a Vida em tema de discussão. Provocaram até reações dos chatos de sempre: as vertentes paranoicas do movimento negro ouviram ecos escravistas na humilhação de Helena por uma branca. As cenas também causaram comoção nos bastidores. Atores e técnicos se debulharam em lágrimas nas gravações do drama de Luciana. Após a cena do tabefe, o pessoal no estúdio aplaudiu. "A Taís chorou todo aquele volume de lágrimas de verdade, tadinha", diz Lilia Cabral. "Ela é emoção pura."

O episódio de segunda-feira marca uma guinada e tanto da personagem de Taís Araújo. Na primeira fase da novela, Helena era uma modelo altiva e segura de si. Mas sondagens feitas pela Globo demonstraram o óbvio: a protagonista não despertava simpatia. Ao contrário, passava a imagem de garota superficial e arrogante (na direção da emissora, há quem acredite que o problema esteja na inadequação da própria atriz: alguns acham que a colega Camila Pitanga funcionaria melhor). Espera-se que o sofrimento e a humilhação pelos quais está passando (já previstos na sinopse, ressalve-se) revertam a aura de antipatia. Trata-se de um caminho bem diferente do habitual para resgatar heroínas problemáticas. Tem sido mais costumeiro que elas não empolguem o público por serem boazinhas demais, no limiar da tontice. Para redimi-las diante do público, a receita é uma só: a mocinha tem de aplicar surras homéricas na vilã. Foi o caso de Maria Clara, a patetona vivida por Malu Mader em Celebridade, de 2003, que superou a chatice esbofeteando a rival Laura (Cláudia Abreu). No caso de Helena, deu-se o contrário: precisou apanhar de uma megera para virar gente.

A humilhação de Helena ainda não surtiu nenhum efeito visível no ibope. Naquela noite, a audiência de Viver a Vida permaneceu nos mesmos 37 pontos que a trama das 8 já vinha alcançando na Grande São Paulo. Na quarta-feira, quando um número excepcionalmente baixo de televisores ligados prejudicou a audiência das redes em geral, despencou para 31 pontos - índice muito aquém do mínimo de 40 pontos esperados pela emissora para o horário. Se a escalada dramática não repercutiu na audiência, pelo menos deu combustível para o humor. A personagem de Alinne Moraes, que emergiu de um acidente violento com a maquiagem impecável e um band-aid na bochecha, deu mote para as melhores piadas. O colunista José Simão, da Folha de S.Paulo, comparou os lábios da atriz a um "bico de tênis Conga". E há quem diga que sua boca finalmente se livrou do resto do corpo para brilhar sozinha. A paródia do Casseta & Planeta foi mais cruel com a personagem deficiente do que com a atriz: uma das piadas do programa, na semana passada, afirmava que Luciana sairá do hospital "com um pé nas costas". A crueldade, aliás, ganha voz na própria novela, com a viborazinha Isabel (Adriana Birolli) - cujo primeiro impulso ao saber dos impedimentos físicos da irmã mais velha foi o de se apossar da barra de balé que Luciana tinha no quarto.

Heroínas de novela foram feitas para sofrer desbragadamente. Comparadas à agonia de Alinne Moraes, que agora só pode mexer o bocão e os olhos verdes, as chorosas tribulações de Taís Araújo são fichinha. Mas os patrulheiros da ideologia racial nada entendem de drama televisivo. No site da CUT, Maria Júlia Nogueira, secretária da central sindical pelega, tascou sua sentença: "A Globo humilha os negros no mês da consciência negra". A escalação de Taís para protagonista de uma novela das 8 - e o fato de sua personagem ser uma mulher de sucesso sem ter de levantar bandeiras - prova exatamente o contrário.

Um comentário:

Gabriel Rocha Gaspar disse...

Rapaz, discordo em número, gênero e grau, Xote. Não acho que a humilhação de Helena na semana da Consciência Negra seja flagrante racismo da emissora, não é isso. Mas, que infeliz coincidência. Já dizia seu amigo MV Bill: "Novela de escravo a emissora gosta/ Mostra os pretos chibatados pelas costas".

A questão é que, quando se trata de grupos sociais historicamente marginalizados, é necessário ter uma dose de bom senso. Os negros nunca se viram representados pela protagonista da novela das oito. "Mas novela é entretenimento raso". Que seja. Como disse seu xará Pedro Almodóvar em entrevista a Época, o povo tem necessidade de ficção. Se a ficção fizesse um dia de greve, a sociedade viria abaixo.

A novela é nossa ágora pública, é um espaço de reflexões - por mais parcas que sejam - com sérios metarreflexos sociais. Em uma semana em que negros de várias partes do País lutam por fazer de 20 de novembro feriado porque querem reconhecer sua própria luta e não se conformar com a visão complacente do regime escravocrata implícita no treze de maio, é grave a primeira negra ajoelhar-se para tomar tapa na cara. É grave porque é a nossa vida, não é só a "soap opera" de baixa audiência. Tapa na cara é a nossa história - é da polícia, do capataz, do feitor, da sociedade que não aceita sequer aceitar Zumbi como o heroi que foi. E brincar com a nossa história desse jeito na única semana do ano em que somos protagonistas é uma ofensa grave. Pode não ser deliberada, mas é infeliz e descompromissada. E lamento, alguém que fala para milhões de brasileiros não tem o direito de ser descompromissado nem infeliz. Fosse na semana seguinte, o ato estaria justificado pelo valor dramático. Naquela semana, a gente negra não pode aceitar.

Quanto à não aceitação da personagem, acho engraçado que o adjetivo "arrogante" sempre apareça associado a negros em cargos de poder. Me lembra aquela frase: "Neguinho não sabe seu lugar".

Abraço!
Pensa