quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Um feliz encontro de ausências




Tema incômodo, peça imperdível
Hamelin, sobre pedofilia, com o galã Vladimir Brichta, é a grata surpresa da atual temporada paulistana


"Um dia minha filha chegou com uma mordida no braço. Perguntei o que era. Ela disse que tinha sido a babá. Mas a babá me deu outra versão. Fiquei em conflito, mas, ainda que minha filha estivesse mentindo, afasteia moça do serviço." O relato do ator Vladimir Brichta ao repórter do Estado ocorre em cima do palco, momentos antes de protagonizar Hamelin, em cartaz até o dia 29 no CCBB. Com um caso real, expõe uma das essências do drama policial que protagoniza há um mês: a possível dissimulação infantil.

O texto do espanhol Juan Mayorga, adaptada por André Paes Leme, centra a história num suposto caso de pedofilia que envolve um figurão da cidade (Alexandre Mello). Vladimir é Monteiro, o juiz que busca incriminar o sujeito. Mas ele tem apenas imagens coletadas do computador do acusado, além do depoimento do irmão mais velho da "vítima". O juiz vai ouvir então a criança. Pergunta três vezes, até extrair a afirmação de que o homem o tocava durante o banho, nos fins de semana em seu sítio. "Mas ele insiste na pergunta para conseguir a verdade ou para forjar a mentira?," provoca Vladimir. "Em Hamelin, nada é conclusivo", emenda. Ao que o diretor intervém: "A conclusão é fácil, difícil é viver com a dúvida."

De fato, cabe ao espectador entender as dúvidas e os conflitos sugeridos em cena. Mayorga impõe rubricas levadas por meio de um comentarista. André Paes Leme ampliou a situação: todos os seis atores, com exceção de Vladimir, se revezam nos comentários, numa dinâmica pontual. Eles funcionam como ilustradores de cena, em perfeita sincronia. E intrigam, em situações como, por exemplo, a em que Monteiro se encontra com a psicóloga (Patrícia Simões) e não responde à mão estendida. Entra o comentário: "Monteiro ignora a mão estendida, ou finge que não vê. E a cumprimenta com um beijo." Monteiro não viu ou preferiu o contato mais íntimo? Quem forma (ou deforma a linguagem) é o espectador. "Ele é manipulado, como a sociedade nos manipula", pontua André.

PREENCHIMENTO DO VAZIO

Não há praticamente recursos cênicos em Hamelin. Apenas uma mesa, luminárias (que os atores acendem e desligam) e um "cantinho" do café. Também não há figurinos. "Me entedia a sensação de maquiagem. Meu trabalho é na essência dos atores", diz o diretor. O elenco se reveza em mais de um papel, como Oscar Saraiva, que atua como a criança abusada e o pai da mesma. Assim, em momento algum o encontro entre o pai e o filho se realiza.

Em 90 minutos, a trama se espalha para outros temas. É um dedo em riste em questões da sociedade e da família, que envolve o julgamento alheio, a manipulação e precipitação da imprensa (lembra o caso da Escola Base?) e o vazio entre a relação de pai e filho. Monteiro, veja só, busca a todo custo defender a criança do pedófilo, mas é impotente com a rebeldia da sua própria cria. Um dia, depois do trabalho, sua mulher conta ter sido agredida pelo filho. Ela apela para que Monteiro tente contornar a dramática situação. Ele nada faz.

São ações (e perguntas) como essas ou outras, a princípio ingênuas, como "Alguém quer carona para a missa?", que incomodam o espectador. "Imagina como deve ser para um pai ausente ver aquela relação do Monteiro com o filho. Ou pior: para um adulto, que por acaso goste de criança, se ver naquela situação?", indaga Vladimir. E conflitante é também - para qualquer um - quando Monteiro coloca o "pedófilo" contra a parede e ouve como resposta (ou defesa) para o seu sentimento: "Pode ser que eu goste de crianças, mas eu controlo meu desejo". E é possível condenar alguém por ter desejos?

LIGAÇÕES DO DESTINO

Foram momentos de ausência de André e Vladimir que resultaram neste feliz encontro. André, que já havia trabalhado com Vladimir duas vezes (A Hora e a Vez de Augusto Matraga e Um Pelo Outro), teve o texto apresentado pela sua mulher Patrícia Simões (a psicóloga na peça). Estava atrás de alguém que pudesse fazer o protagonista. Cogitou que devia ser um ator mais velho. Vladimir, que acabara de fazer um blockbuster, o musical Os Produtores, buscava um texto em que conseguisse aprofundar o papel de ator. Algo forte, que exigisse entrega. "Ligava para todo mundo que estava montando algo", conta. Até que um dia atendeu uma ligação de André. "Ele falou sobre a peça e pediu indicações. Até sugeri alguns. Mas quando li, pensei, "sou eu"". E por quê? "Sou pai desde os 21, e a peça fala sobre educação e família; sobre falhas e ausências."

Se Vladimir encontrou o que queria? "Sem dúvida", diz, sob o olhar cúmplice do diretor. "Estou me agradando", completa, com sorriso entrecortado. Não é uma tarefa fácil. "Às vezes, dá vontade de chorar, de ver o quanto a gente é incapaz", diz Vladimir. Para André, "teatro não é só para rir": "É uma contribuição que faço à sociedade". Contratado da TV Globo, o ator sabe que deve ser escalado para algum projeto em 2010. Mas quer aproveitar o palco. "Hamelin é um jogo de cena contemporâneo que retoma o instrumento mais antigo do teatro: o poder da palavra." Para Vladimir, a peça merece ser levada a "pontos inimagináveis do País". Já tem garantida passagem por Fortaleza e temporada no Rio. "É meu espetáculo mais necessário", corresponde o diretor. A rasgação pode soar clichê. Ao vivo, faz todo sentido.

Em tempo, André já rascunha novo projeto, idealizado antes até de Hamelin. O tema? A história real de uma menina que acusou o pai de abuso sexual, mas tentou voltar atrás, sem sucesso, quando ele já havia sido condenado. Vem (outra) provocação das boas por aí.

* publicado originalmente no Caderno 2, do Estado de SP, do dia 18/11/2009

3 comentários:

chubs disse...

Hamelin cena final: todos aplaudem.

Pedro Henrique França disse...

e como aplaudem né chubs? que bom que consegui te levar. como diz vladimir, essa peça merece ser levada a pontos inimagináveis. Ao que eu completo: a corações dos mais diversos, como o teu.

chubs disse...

Os aplausos são para você.